Caso Studio Ghibli x IA
- hiagocordioli
- 31 de mar.
- 4 min de leitura

A inteligência artificial generativa vem remodelando o cenário da criação artística. Ferramentas de IA como Midjourney, DALL·E e Stable Diffusion permitem que qualquer pessoa, com alguns comandos de texto, gere imagens sofisticadas em estilos variados — inclusive emulando estéticas consagradas, como o estilo visual do Studio Ghibli. Essas imagens têm se multiplicado nas redes sociais, geralmente com fins não comerciais, e levantam debates intensos sobre autoria, direitos autorais e os limites da criatividade mediada por máquinas.
Este artigo propõe uma reflexão em defesa do uso de obras protegidas por direitos autorais como insumo para o treinamento de IAs, especialmente quando os resultados gerados são utilizados para fins pessoais e não prejudicam economicamente os autores originais. Ao mesmo tempo, busca demonstrar que estilos artísticos — como o estilo de desenho japonês que caracteriza o Studio Ghibli — não devem, e não podem, ser protegidos por direitos autorais.
O chamado “estilo anime”, hoje reconhecido globalmente por suas características visuais específicas, não surgiu com o Studio Ghibli. Sua origem remonta à década de 1950, com Osamu Tezuka, o “pai do mangá moderno”, criador de Astro Boy (Tetsuwan Atom). Inspirado por Walt Disney e pelo cinema ocidental, Tezuka introduziu olhos grandes e expressivos, narrações visuais cinematográficas, cortes dinâmicos e personagens emocionalmente complexos. Esses elementos se consolidaram como um novo vocabulário visual — que viria a influenciar toda a produção de mangás e animes nas décadas seguintes.
O Studio Ghibli, fundado nos anos 1980 por Hayao Miyazaki, Isao Takahata e Toshio Suzuki, não criou um estilo do zero, mas refinou essa tradição. Suas obras combinaram o legado visual de Tezuka com novos elementos poéticos, ecológicos e filosóficos, criando uma assinatura artística inconfundível — mas, ainda assim, derivada de uma linguagem já existente e compartilhada.
Em outras palavras, o “estilo Ghibli” é uma evolução cultural de um estilo anterior. E isso revela uma verdade essencial sobre qualquer linguagem artística: estilos não nascem isolados, mas a partir de um contínuo processo de influência, apropriação e transformação.
A Lei de Direitos Autorais brasileira (Lei 9.610/98), assim como a maioria das legislações ao redor do mundo, protege a forma de expressão de uma ideia, mas nunca a ideia em si. Assim, personagens, cenas, trilhas sonoras e roteiros podem ser protegidos. Já estilos, gêneros, atmosferas ou técnicas são considerados abstrações, e não criações protegíveis.
O estilo, por definição, é uma forma recorrente de representação — é o conjunto de características que define uma escola artística, um movimento cultural ou a identidade de um criador. Proteger estilos por direitos autorais significaria impedir que novas gerações de artistas, humanos ou não, aprendessem, imitassem ou reinterpretassem essas linguagens. Seria equivalente a dizer que um novo pintor não poderia adotar o impressionismo, ou que um romancista não poderia escrever no estilo de Virginia Woolf.
No contexto da IA, o aprendizado de estilos é semelhante ao aprendizado humano: o sistema é exposto a milhares de obras, compreende padrões, e a partir disso, gera algo novo. Esse processo não é de cópia literal, mas de abstração criativa. Exigir que IAs ignorem completamente estilos existentes seria como exigir que artistas humanos criassem sem qualquer bagagem cultural — o que é não só impossível, como indesejável.
Críticas ao uso de IA com base em obras protegidas frequentemente assumem que esse uso compromete o direito do autor. Mas essa premissa só é válida quando há cópia direta, substituição econômica ou prejuízo à exploração legítima da obra original.
Nas redes sociais, o que se vê é o uso de IA para criar imagens no estilo Ghibli (ou em outros estilos) como expressão pessoal, sem qualquer intenção de lucro. São avatares, paisagens fictícias, reinterpretações criativas — produtos de admiração, não de concorrência. Esses usos, ainda que baseados em obras protegidas no treinamento, geram resultados novos, distintos e sem impacto negativo sobre o mercado original.
A legislação brasileira, embora não adote o fair use como o sistema americano, reconhece exceções ao direito autoral, como o uso privado, o uso educacional e o uso de obras para fins de paródia ou crítica. A criação pessoal de uma imagem por IA, sem cópia literal, sem fins comerciais, e sem concorrência ao original, deve ser compreendida como um uso legítimo, de baixa lesividade, e alinhado com os princípios constitucionais da liberdade de expressão e do acesso à cultura.
A criação por IA não é uma ruptura com a arte, mas uma continuação da longa história da influência e da reinvenção cultural. Treinar modelos de IA com obras protegidas — quando feito com responsabilidade, sem substituir os originais, e com foco no uso pessoal — não apenas é compatível com o direito autoral, como também favorece a disseminação da cultura, a educação artística e a inovação criativa.
Proteger excessivamente estilos ou restringir o aprendizado das IAs seria como impedir os próximos Hayao Miyazakis — humanos ou não — de existirem. Contudo, o caminho para a regulação do uso de IAs e proteção dos artistas é bastante longo e teremos muitas discussões pela frente para balancear os interesses dos criadores e o interesse público no uso de obras para aprendizado de IAs.
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